Round Table Remarks

Gabriela Lenz de Lacerda* | Brazil

Round Table Remarks

“Banzeiro é como o povo do Xingu (da Amazônia) chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente. Silencia para não acordar a raiva do rio.

Não há sinônimo para banzeiro. Nem tradução. Banzeiro é aquele que é. E só é onde é” (BRUM, 2021).

Começo a minha fala com esta citação da jornalista Eliane Brum porque, vindo para o Vaticano, depois de quatro anos daquele nosso primeiro encontro aqui, nesta Academia, me veio à mente o tanto que vivemos desde então.

Em 2019, nós, brasileiros que aqui estávamos, relatamos (um tanto inflamados) como, desde o golpe de 2016, vivíamos um período de retrocesso de direitos sociais, com o esfacelamento de políticas públicas, a multiplicação da pobreza e o aumento da desigualdade social.

Acreditávamos, então, que estávamos no auge da brabeza do rio e, quando ainda estávamos tentando navegar, a pandemia nos atravessou.

Fomos puxados para o fundo do rio, bem no ponto mais perigoso do banzeiro. Muitos de nós ficaram por lá. 700 mil brasileiros foram vitimados por COVID. Fomos um dos países com maior quantidade de mortos por habitante do mundo. O vírus não nos atingiu por igual – pessoas negras e periferizadas foram as mais atingidas. Simbolicamente, a primeira vítima foi uma mulher negra, trabalhadora doméstica, que pegou o vírus dos patrões que tinham viajado para o exterior.

Entre os grupos mais atingidos, estão as pessoas indígenas. A falta de um plano imediato de proteção aos povos originários fez com que o ex-presidente e outras autoridades do governo tenham sido denunciados ao Tribunal Penal Internacional pela prática de genocídio e outros crimes contra a humanidade. Lideranças como Paulinho Paiakan, Aruká Juma e tantas outras foram vitimadas.

E por que eu faço estas referências em um painel sobre emergências climáticas? Porque são os povos da floresta – justamente estes que resistem ao projeto colonial desde 1.500 – os principais guardiões da Floresta Amazônica. Esta floresta que, cada vez mais, se aproxima perigosamente do ponto de não retorno, o momento em que deixará de ser floresta e já não poderá fazer o seu papel de reguladora do clima.

Os povos originários nos ensinam que não existe esta separação entre a natureza e as pessoas humanas (este binarismo próprio da lógica colonial). Há apenas a natureza. Os indígenas não estão na floresta ou são proprietários da floresta – eles são a própria floresta.

A liderança indígena Davi Kopenawa se refere ao “branco” como o “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”. A violenta lógica extrativista, de exploração, fez com que povos como os Yanomamis colocassem a própria existência, seus próprios corpos, em risco para evitar a destruição da casa comum.

É a nossa dependência de combustíveis fósseis e o consumo desenfreado, especialmente de uma minoria rica do norte global, que levou o planeta à emergência climática.

Gostaria de dizer que a partir de janeiro deste ano, com a mudança de governo, saímos do banzeiro e finalmente chegamos a tempos de calmaria dos rios.

Não devemos esquecer, contudo, que foi em 2010, período em que o atual presidente estava no poder, que foi feito o leilão da hidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu.

A barragem é um projeto da ditadura militar de 64 e nenhum governo conseguiu executar em razão da resistência dos povos indígenas, em especial dos Kayapós, e de movimentos sociais da região da cidade de Altamira. A obra – realizada em um governo progressista – trouxe graves consequências para os rios da região, especialmente o Xingu, criando um “cemitério de árvores” e desalojando diversas comunidades ribeirinhas.

Os pactos coloniais são, portanto, compartilhados inclusive por governos de centro-esquerda, igualmente guiados por uma lógica desenvolvimentista que está matando e destruindo a todos nós, consumindo a nossa casa comum.

E quanto a nós, juízes e juízas latinoamericanos? Quais os nossos desafios por habitarmos um continente que tem a maior floresta tropical do planeta, 60% dela em território brasileiro?

Os desafios são inúmeros porque o colonialismo não estrutura apenas as nossas instituições, mas também as nossas próprias subjetividades. Somos sujeitos profundamente colonizados – e, como tal, nos tornamos juízes “juridicamente dóceis e economicamente úteis” ao capital.

Como nos ensina Franz Fannon, em “Os Condenados da Terra”, uma das peculiaridades da sociedade colonial é que as instituições são ocupadas, desde suas origens, pelo colonizador e, depois, por quem mais se parece com ele. Os espaços de poder institucionais, tal qual a magistratura, são transmitidos em países racializados, como o Brasil, à população branca como herança.

Não se trata de coincidência, portanto, que tenhamos no Brasil mais de 80% de juízes brancos – em uma população que é mais da metade negra.

Já me encaminhando para o final e pensando em proposições, reforço as sugestões trazidas ontem como na fala da colega Ana Inés Latorre – quanto à necessidade de democratizarmos as instituições, garantindo que elas reflitam a composição da população. E garantindo, inclusive, a participação de pessoas indígenas, capazes de agregar outras visões, inclusive sobre o “direito à propriedade”.

Registro, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal decidirá nos próximos meses o chamado “marco temporal”. Uma tese jurídica que, acaso chancelada, irá restringir imensamente o acesso aos territórios. Cabe lembrar que nós nunca tivemos um integrante do Supremo Tribunal Federal indígena. Existem, aliás, cerca de 11 magistrados autodeclarados indígenas no Brasil, em um universo de 18 mil juízes. Os juízes do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, são todos brancos sendo que dos 11 integrantes, 9 são homens brancos.

Como segunda sugestão, ontem surgiram diversas proposições quanto à necessidade de formação de magistrados e magistradas. Penso, contudo, que pouco adiantaria colocarmos juízes brancos, de classes mais elevadas, dentro de uma sala de aula para ouvir palestras expositivas.

É o corpo que conhece, que vive a experiência. Eu, uma Juíza do sul do Brasil, comecei a compreender que a Amazônia é o centro do mundo quando desloquei meu corpo, este, território-político, até lá. Quando me banhei no rio Xingu. Não bastam ler livros, é preciso sentir a floresta. E esta não é apenas uma experiência intelectual. Somos seres sentipensantes, como nos ensinam os povos andinos.

E, por isso, trago o relato que na última semana a ministra Rosa Weber, atual Presidenta do Supremo Tribunal Federal, fez a sua primeira viagem institucional e escolheu como destino o interior do Amazonas, visitando a aldeia Paraná, no Vale do Javari. O local se tornou conhecido porque foram brutalmente assassinados o jornalista britânico Dom Philips e o indigenista, aliado dos povos da floresta, Bruno Pereira.

Com o seu exemplo, a Ministra ocupante do cargo máximo dentro do Poder Judiciário faz ecoar as vozes dos povos da floresta, sistematicamente silenciadas pelo projeto colonial. E, mais do que isso, nos ensina a importância de nos deslocarmos, de dentro dos nossos gabinetes, para os territórios. De tocarmos outras realidades, conhecermos outras culturas. Estarmos abertos ao processo de se “desembranquecer”, ampliar o seu olhar a partir da experiência.

Como ontem referiu a colega Ananda Tostes, temos trabalhado num acordo de cooperação para a realização da justiça itinerante na Amazônia que facilitará o acesso à justiça e, também, de deslocamento territorial de magistrados e magistradas. Penso que uma diretiva importante que poderíamos tirar deste encontro é pensarmos em uma cooperação envolvendo os países que têm jurisdição na Amazônia.

Não sei se estamos saindo do banzeiro. Crise ambiental, emergência climática, provavelmente retirem das nossas gerações as possibilidades de vivermos tempos de calmaria. Mas ainda assim, só o fato de estarmos aqui hoje, reunidos em coletivo, “aquilombados”, e causando fissuras no centro do poder, já é um motivo de esperançar.

 

* Juíza do Trabalho. Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide – Sevilha/Espanha.