Por um Poder Judiciário anticolonial

Ana Inés Algorta Latorre* | Brazil - Vice Presidenta Comité Panamericano

Por um Poder Judiciário anticolonial

Prezados todos,

Quando assumimos um cargo como o de juiz, promotor, defensor público... estamos assumindo este cargo porque a Constituição de nosso país prevê a existência e regula o funcionamento destas instituições. No Brasil, e penso que na grande maioria de nossos países atualmente, a Constituição que juramos defender ao ingressar na carreira da magistratura é uma Constituição democrática. Não apenas isso: a Constituição Brasileira, já em seu preâmbulo, diz:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

No artigo 3º, enumera os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Temos um projeto de país, não de sermos colônia. No momento em que assumimos nosso cargo como magistrados e juramos defender a Constituição, nos vinculamos a este projeto, não mais apenas como cidadãos, mas como agentes profissionais na busca de sua efetivação. Trabalhar para quaisquer outros interesses que não estes significa quebrar o juramento feito, deixar de atender ao compromisso que se espera de nós enquanto membros do Poder Judiciário.

Costumo começar trazendo essa lembrança, embora pareça estar falando uma obviedade. Há muito pouco tempo, tivemos um governo abertamente fascista eleito democraticamente, no que já foi mencionado como um “suicídio da democracia”. A continuidade desse des-governo poderia ter significado o fim de grande parte das instituições brasileiras, e a continuidade das demais apenas como forma, sem que efetivamente conseguissem cumprir as finalidades que lhes são atribuídas constitucionalmente. E foi por muito pouco que o Brasil conseguiu evitar a continuidade desta catástrofe.

A Constituição brasileira de 1988, como toda Constituição, estabelece um projeto de país, um projeto de sociedade. Ou seja, estabelece a direção para onde todos os agentes de Estado devem mover sua atuação, os valores a partir dos quais devem mover-se. Podemos pensar que o Constituinte inseriu esses valores no texto constitucional, que é a carta fundante de uma sociedade, apenas para fazer um bom papel, e que, na verdade, não devem ser levados a sério? Pensar assim significaria concluir que todas as instituições existem apenas pro forma e não precisam ser levadas a sério...

Por isto, a esta altura, independentemente do tempo durante o qual cada um de nós ocupa seu cargo, cabe a pergunta: qual a direção de minha atuação como agente de um Poder do Estado? Na minha atuação, quais os interesses que estão representados? Esta questão é filosófica e política, mas é política no sentido mais amplo. Não significa que atuamos representando diretamente os interesses de uma pessoa ou grupo, o que nos tornaria parciais. Não significa que tenhamos uma atuação (enquanto profissionais) no jogo político partidário do nosso país. Mas, sim, que, ao sermos agentes de um Poder do Estado, temos a clareza de nosso compromisso em contribuir para a manutenção saudável das instituições deste Estado e para a consecução dos objetivos deste mesmo Estado e de seus valores fundantes. E isto parece tão simples, que beira a obviedade. Ainda assim, temos verificado muitos desvios neste caminho patrocinados por membros do Poder Judiciário, com consequências nefastas, em nossa história recentíssima.

Vivemos em uma sociedade na qual, para além de todas as complexidades existentes, que para fins didáticos nesta pequena fala se deixam de abordar, podemos identificar a existência, por um lado, de diversos projetos de vida, que incluem a diversidade dos povos e das culturas, e, por outro lado, a colonização da vida das pessoas por um grande projeto de morte, uniformizador, autoritário, que transforma a tudo e a todos em mercadorias, que não se sensibiliza para com a vida e que se dispõe constantemente a se impor por meio da violência. Este projeto tem cooptado a vida das pessoas e, por meio de diversas estratégias de comunicação de massa, tem-se infiltrado nas mentes e ganhado apoio. Porém, não promove uma cultura de paz, e sim uma sociedade na qual o preconceito e a discriminação justificam a violência contra o outro (visto como tal os integrantes de grupos racializados, as mulheres, os povos indígenas e afrodescendentes, a população LGTBQIAP+, e tantos outros grupos vulnerabilizados), em favor dos ganhos econômicos de muito poucos.

A grande maioria dos magistrados não tem olhos nem ouvidos para esta realidade. A seleção dos membros do Poder Judiciário e das demais carreiras do Sistema de Justiça se dá entre as pessoas que tiveram o privilégio de cursar uma faculdade de Direito e puderam se preparar para as exigências do concurso público. Toda a formação dos membros de uma elite se dá de forma a que as vozes dos mais vulneráveis não ouvidas por eles. Os detentores de privilégios permanecem cegos às opressões e violências que estes mesmos privilégios causam. Os representantes da modernidade padecem constitutivamente dos males que já mencionava o Prof. Enrique Dussel: a branquitude racista, o masculinismo tóxico, o desprezo pelas culturas próprias de cada povo, a presença de um ego individualista e competitivo. Se as instituições permanecerem selecionando apenas integrantes com este perfil, permanecerão reproduzindo estruturalmente o colonialismo.

É fundamental que se possam incluir no Sistema de Justiça pessoas com origem nos grupos vulnerabilizados. Que tenhamos mais juízas e lhes sejam dadas condições para avançar na carreira da mesma forma que aos colegas homens, visibilizando-se e eliminando-se o chamado “teto de vidro” . Que tenhamos mais juízas e juízes negros. Que passemos a ter juízas e juízes indígenas que se reconheçam como tais. Que tenhamos juízas e juízes de orientações sexuais e identidades de gênero diferentes da hegemônica.

Ainda, que todos os integrantes do sistema de Justiça possam receber periodicamente formação em direitos humanos focada em conhecer as vivências e o ponto de vista dos grupos e comunidades historicamente vulnerabilizados, a fim de que possam fazer uma avaliação ampla e ter clareza quanto ao que está em jogo cada vez que se julga uma questão complexa abrangendo os interesses dos mais vulneráveis (e aqui não me refiro apenas às ações de grande repercussão, mas aos inúmeros processos penais que submetem os marginalizados, principalmente os negros e os indígenas, de forma bastante seletiva, e os aprisionam “preventivamente” em presídios superlotados, às incontáveis ações trabalhistas que os trabalhadores se vêem obrigados a ajuizar para obter direitos que são sonegados pelas empresas que os empregam, às inúmeras ações previdenciárias que os mais pobres são obrigados a ajuizar para garantir seu sustento na ocorrência de doença, invalidez, morte, prisão do provedor da família, às ações de reintegração de posse que todo o tempo são ajuizadas para retirar aqueles que não têm onde morar, sem que se resolvam as questões de habitação por meio de políticas públicas, e tantas outras ações “de massa” que constituem nosso trabalho cotidiano).

Por fim, nossas sociedades são plurinacionais. Nelas coexiste a nação que na hegemonia percebemos como única, a sociedade dita “ocidental” ou “branca”, com suas normas e valores dominantes, com as nações dos diversos povos indígenas que habitam cada um de nossos países, bem como de outros povos tradicionais (no Brasil, temos grande número de comunidades quilombolas, caiçaras, ribeirinhas...). O modo de vida indígena, os valores que fundamentam uma sociedade indígena, não são compreensíveis pela sociedade hegemônica, a não ser por meio de um exercício de alteridade que não todos se dispõem a fazer.

Recentemente se teve notícia de uma decisão que determinou a reintegração de uma fração de terra urbana que havia sido retomada por uma comunidade indígena, com autorização do uso de força policial e com a determinação de que a comunidade fosse realocada na terra que constitui reserva e é habitada por uma comunidade de outro povo indígena. Decisões como esta não são raras.

Há que lembrar que atualmente, mesmo no Brasil, há tratados internacionais (que têm validade supra legal) que fundamentam o direito dos povos indígenas ao território, à consulta prévia e informada, à autonomia. Além disso, as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos são bastante consistentes em reconhecer esses direitos aos povos indígenas. Se temos nações plurinacionais, e temos este marco legal, deveríamos nós, juízes, reconhecer na prática estes direitos aos povos indígenas, e, inclusive, deixar de reivindicar para nós, juízes brancos, a exclusividade da prestação jurisdicional nas questões que afetam aos povos indígenas, admitindo os sistemas jurídicos próprios das comunidades indígenas, e não apenas para questões “menores” ou causas de pequena repercussão.

Como membros do Poder Judiciário e outras carreiras do Sistema de Justiça, não podemos nos furtar de buscar formação nas questões que afetam aos mais vulneráveis e de tomar atitudes concretas, tanto em nossa atuação diária quanto na reformulação de nossos processos de trabalho, que levem em consideração especialmente a estes. Só assim estaremos trabalhando para a consecução de uma sociedade livre, justa, solidária, fraterna, na qual seja possível que todas, todos e todes vivam em harmonia e tenham assegurado o seu direito a existir com suas culturas e modos de viver próprios.

Grata pela atenção.

 

* Juíza Federal na Seção Judiciária do Rio Grande do Sul do Tribunal Regional Federal da 4ª Região; Vice-Presidente da Junta Promotora do COPAJU.