Resistência Coletiva: Esperança e Luta

Ananda Tostes Isoni* | Brazil

Resistência Coletiva: Esperança e Luta

De início, gostaria de prestar homenagem à bisavó de meu saudoso pai, Dona Tereza, por sua resistência à escravidão a que foi submetida e à bisavó de minha avó Dona Nadyr, indígena a quem tentaram subjugar. Se não fosse à luta e coragem dessas mulheres, hoje eu não teria voz em uma mesa redonda sobre Decolonialismo e Justiça Social. Bem sei que por uma confluência de fatores que se sucederam à trajetória de minhas ancestrais, faço parte da exceção que confirma a regra da dura perpetuação de desigualdades.

Ouvir o professor Boaventura[1] evocar Spinoza para falar de medo e esperança me fez recordar as palavras que ouvi do Papa Francisco há quase quatro anos, aqui mesmo na Casina Pio IV, ao dizer que juízes e juízas são poetas sociais quanto não têm medo de serem protagonistas da transformação do sistema judicial baseado no valor, na justiça e na primazia da dignidade da pessoa humana sobre qualquer outro interesse ou justificação.[2]

Também me fez lembrar das lições de Paulo Freire, que dizia ser preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar. Há pessoas que têm esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, construir, juntar-se com outros para fazer de outro modo.[3]

Essa esperança que inspira resistência e construção coletiva e que chega a mim a partir da história de meus antepassados é o legado que gostaria de deixar às minhas filhas, uma das quais carrego hoje em meu ventre. Isso porque “A ancestralidade sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo”,[4] tal qual nos disse a líder indígena Sônia Guajajara, que participou do evento de abertura do Capítulo Brasileiro do COPAJU em 2022 e que ocupa hoje o cargo de Ministra dos Povos Indígenas.

A força da coletividade também aparece na fala do professor Boaventura ao tratar da necessidade de se forjar alianças entre lutas de resistência contra os diferentes modos e vetores de articulação. Ela igualmente exsurge no discurso do professor Zaffaroni[5] quando aponta caminhos de enfrentamento contra o colonialismo tardio que afeta o judiciário.

Foi a partir do reconhecimento do poder do coletivo que, inspirados pelas palavras e exemplo de Francisco, fomos todas e todos convocados a assumir em conjunto o papel que a hora nos exige, nos termos da Declaração de Roma, firmada em 2019, coordenando esforços, desenhando estratégias e ratificando nosso compromisso com a dignidade humana e a paz global e com a realização dos direitos humanos em todas as dimensões.[6]

E aqui quero prestar testemunho de que caminhar ao lado de juízas e juízes do comitê tem ajudado a manter viva minha capacidade de esperançar; a manter vivo o ideal de tentar suprir essa lacuna insondável entre um presente fechado e temeroso e um futuro aberto e esperançoso, tal qual nos propõe o professor Boaventura.

E isso, preciso dizer, é um grande desafio em um país como o Brasil, onde vivemos uma realidade repleta de exclusões radicais ou abissais. No mês passado, acompanhamos o resgate de duzentos trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em vinícolas do sul do país. Trabalho forçado sob a mira de armas e spray de pimenta, choques nos pés, espancamentos, jornadas de trabalho de mais de quatorze horas, oferta de alimentos estragados e retenção de salários em razão de supostas dívidas estão entre os abusos relatados pelos trabalhadores resgatados. 

Um deles desabafou atônito: “O que passamos não foi coisa de Deus”. E não foi. Foi coisa de homens. Homens que se julgam no direito de explorar, oprimir e violentar outras pessoas em nome do lucro. É escandaloso que uma das vinícolas que se beneficiou do trabalho desses homens escravizados tenha noticiado em 2022 o maior faturamento de toda sua história: R$ 500 milhões de reais. Trata-se da mais antiga vinícola em atividade no Brasil, com origens em meados do século XVIII, por iniciativa de uma família europeia instalada na colônia Dona Isabel (hoje Bento Gonçalves).

O caso está longe de ser isolado. Mais de duas mil pessoas em condições análogas à de escravo são resgatadas por ano no Brasil. E sabemos que esse número não reflete a grave realidade do trabalho escravo em seu todo.

Também esse ano mais de mil indígenas yanomamis foram resgatados em estado grave de saúde, com quadros de malária e desnutrição. O povo yanomami nunca precisou de doação de alimentos para sobreviver. É um povo de mobilidade territorial, vivem da caça, da pesca. Esse cenário de vulnerabilidade foi provocado pelo garimpo, que contaminou os rios da região com mercúrio. Com a água e os animais contaminados, um caçador yanomami não encontra caça para alimentar sua família.

E não é só. Mulheres e crianças sofrem rotineiramente assédios sexuais de garimpeiros, que envolvem promessa de ouro em troca de sexo, bebidas alcóolicas, armas, trabalho e materiais de alto valor como uma forma de garantirem acesso ao território.

A vulnerabilização dos povos indígenas como expressão de um colonialismo persistente no Brasil confirma a afirmação do professor Zaffaroni de que o debate de Valladolid é um fato do passado que se projeta no presente.

Apesar de todas as adversidades o povo brasileiro resiste. Resiste aos processos de colonialismo e neocolonialismo que o atravessam desde 1500. Resiste às investidas de desumanização, exploração e privação de direitos básicos voltadas sobretudo a mulheres, pessoas negras, indígenas e em situação de vulnerabilidade. Resiste às tentativas de golpe à Democracia como o mundo pode testemunhar no dia 8 de janeiro deste ano.

E as juízas e os juízes brasileiros não estão e não estarão alheios a esta luta. De nós se espera a concretização de normas internacionais e constitucionais que assegurem, para além da letra fria da lei, a construção efetiva de uma sociedade livre, justa e solidária. Como coordenadora-geral do Capítulo brasileiro do COPAJU, posso testemunhar que temos nos comprometido a cumprir essa missão, embora ainda haja muito trabalho a ser feito.

Para citar apenas uma dentre as muitas ações em que estão envolvidos juízas e juízes do COPAJU Brasil em suas missões institucionais está a celebração de termo de cooperação por Conselhos do sistema de Justiça prevista para este ano com o objetivo de desenvolver ações conjuntas para garantir e promover o pleno acesso à justiça na Amazônia Legal por meio dos Serviços da Justiça Itinerante. São juízes e juízas que saem dos muros dos tribunais e vão até os povos da floresta.

O programa abrange a promoção de formação inicial e continuada de magistrados(as), nas especificidades da região que é marcada por relevantes questões ambientais, indígenas e dos demais povos e comunidades tradicionais, de modo a melhor compreender o contexto socioambiental da Amazônia Legal e a prestar um melhor atendimento à população.

Mas sabemos que isso não é suficiente. E é por isso que um grupo de trabalho foi formado para construir políticas afirmativas que ampliem o ingresso de indígenas na magistratura. Trata-se de reconhecer o papel dos povos indígenas e promover medidas efetivas para que ocupem espaços de poder.

O Papa Francisco nos convoca a atuar com independência e coragem, a somar esforços e semear condições para que as gerações atuais e também as futuras possam superar as dinâmicas de exclusão e segregação. E é com profundo respeito à trajetória de luta das pessoas que nos antecederam e escuta às que foram silenciadas que nós iremos resistir, pensar e construir juntos(as) caminhos, para que a desigualdade não tenha a última palavra.

 

* Juíza do Trabalho, Coordenadora-Geral do Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízas e Juízes para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana e Gestora Nacional do Programa Trabalho Seguro. É também uma das idealizadoras e coordenadoras do Grupo de Estudos Interseccionais sobre Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Publicou diversos livros e artigos em periódicos sobre temas relacionados aos direitos sociais e ao papel do Judiciário.

  1. Santos, Boaventura de Sousa. Discurso proferido em 31/03/2023 na Cúpula sobre “Colonialismo, Descolonialização e Neocolonialismo: Uma perspectiva de justiça social e bem comum”, promovida pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais, na Casina Pio IV (Vaticano).
  2. Francisco, Papa. Discurso proferido em 04/06/2019, na Cúpula Pan-Americana de Juízes, sobre o tema: Direitos Sociais e Doutrina Franciscana”, promovida pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais, na Casina Pio IV (Vaticano).
  3. Fraire, Paulo. “Pedagogia da Esperança”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  4. Guajajara, Sônia. Carta lida perante a Embaixada da Noruega em 21/9/2021, em iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Social contrária à destruição em curso acelerado dos biomas brasileiros, em especial da Floresta Amazônica.
  5. Zaffaroni, Eugenio Raúl. Discurso proferido em 31/03/2023 na Cúpula sobre Colonialismo, Descolonialização e Neocolonialismo: Uma perspectiva de justiça social e bem comum, promovida pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais, na Casina Pio IV (Vaticano).
  6. Declaração de Roma, firmada em 04/06/2019, na Cúpula Pan-Americana de Juízes, sobre o tema: Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, promovida pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais, na Casina Pio IV (Vaticano).